O “Minhocão” é uma via com 3,6 quilômetros (km) de extensão, feita de concreto e asfalto, encravada na região central da cidade de São Paulo. Neste ano, a obra completou, sem festas, meio século de existência, mas com uma novidade: se tornou um corredor de arte urbana, que coloriu uma região decadente e cinza da capital paulista e está possibilitando ao paulistano ver o elevado de concreto com outros olhos.
A presença do Minhocão na vida da maior cidade do país nunca foi amistosa ao longo do tempo. A ideia de desativar o Elevado João Goulart para o tráfego é uma decisão já amplamente discutida, mas, ultimamente, em vez de derrubar o elevado, agora já se admite transformar toda a área num imenso boulevard, com jardins, e suas pistas passarem a ser ocupadas por pedestres, ciclistas, por feiras de artesanato e pequenos pontos de conveniência. Sai o carro e entra o paulistano para fazer do espaço uma grande área de lazer e de difusão cultural.
Recentemente, os edifícios que já existiam ao longo do trajeto, antes da construção, passaram a abrigar imensas obras de arte urbana. Os trabalhos foram feitos nas paredes laterais dos prédios. São trabalhos quase da mesma altura dos próprios edifícios.
Agora, todo mundo que passa agora de carro por ali pode apreciar as 42 pinturas como se estivesse em um museu aberto.
“É como se o paulistano tivesse ganhado, durante a pandemia, uma galeria de arte ao ar livre”, disse o professor de cursinho universitário Vinicius Costa, que sempre passou pelo Minhocão para ir ao emprego e retornar para casa.
São trabalhos multicoloridos, assinados por artistas como Kobra, @nosartivistas, Tek e Sapatintas. “É a redescoberta de uma parte da cidade que tinha sido abandonada após o surgimento do Elevado”, afirmou Costa.
As próprias colunas de sustentação das pistas, encravadas no vão central da avenida General Olímpio da Silveira, frequentemente são usadas para trabalhos de grafiteiros. No local, já ocorreu até uma exposição de fotos, além de outras manifestações artísticas.
No começo deste mês, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, esteve em Nova York, nos Estados Unidos, e aproveitou para conhecer o parque High Line, que já foi uma espécie de Minhocão para os moradores de lá. O High Line era um via férrea muito antiga, que cortava a cidade norte-americana, passando entre edifícios e foi desativada em 1980.
Mas em vez de derrubar a linha, a prefeitura norte-americana fez uma revitalização de construções antigas. Com isso, promoveu uma restauração arquitetônica e artística do espaço e transformou a área em um grande jardim, com a criação de um ponto de lazer e visitação de moradores e turistas.
O Minhocão foi construído no início da década de 1970 para dar vazão ao crescente aumento do tráfego de veículos na capital paulista, reduzindo os congestionamentos nas ruas centrais de São Paulo.
A via aérea não conseguiu acabar com os congestionamentos e teve um efeito colateral: provocou a rápida deterioração urbana da região próxima do Elevado e ao longo de toda a sua extensão, entre os bairros República, Santa Cecília e Barra Funda.
Os imóveis localizados no entorno sofreram grande desvalorização. Os moradores de classe média, que ali viviam nos anos 1960 e 1970, deixaram os edifícios, incomodados com o barulho dos veículos e com a poluição dos escapamentos.
Vários prédios, ao longo do Elevado, são considerados tesouros de estilos arquitetônicos europeus, de uma época em que as construções eram feitas pelos imigrantes, principalmente os italianos.
Com a degradação da região, sob o Elevado, os espaços vazios passaram a ser ocupados por moradores de rua. No começo dos anos 1980, surgiu ali o embrião da “cracolândia”, que segue até hoje na área central de São Paulo.
A escolha do Elevado foi cenário do filme “Ensaio sobre a cegueira”, de 2007, baseado em livro homônimo de José Saramago, dirigido por Fernando Meirelles e que teve atores de Hollywood importantes como Mark Ruffalo e Juliane Moore. No filme, as cenas no “Minhocão” mostram uma metrópole assolada por uma pandemia de cegueira. Meirelles afirmou na época que o Elevado era o ponto ideal para aquelas cenas fantasmagóricas.
O projeto do arquiteto Luiz Carlos Gomes Cardim Sangirardi, que trabalhava, em 1968, no Departamento de Urbanismo da Prefeitura paulistana, foi apresentado primeiramente ao então prefeito José Vicente de Faria Lima, que governou a cidade entre 1965 e 1969 e surgiu como “solução ao tráfego pesado da Avenida São João, duplicando sua capacidade sem alargá-la, indo até a Praça Marechal Deodoro”.
Faria Lima, que hoje dá nome a uma das avenidas mais emblemáticas da capital paulista, recusou o projeto. Para o prefeito, tratava-se de uma obra muito radical e cara e que não garantia os resultados positivos no escoamento do tráfego. Faria Lima preferia dar prioridade à construção do metrô, transporte público capaz de retirar carros de circulação e reduzir a poluição.
Em 1969 o brigadeiro passou o comando de São Paulo para Paulo Maluf, então com 38 anos de idade. Maluf foi procurado pelo arquiteto Sangirardi, que lhe apresentou o mesmo projeto. Por acreditar que o elevado marcaria sua gestão, Paulo Maluf topou realizá-lo, sem qualquer estudo de impacto urbano prévio. O Minhocão foi construído em tempo recorde – onze meses - por quase mil operários, que faziam jornadas diárias de 16 horas. Custou 37 milhões de cruzeiros (equivalente a R$ 4,6 bilhões em valores de hoje).
Não demorou muito para que o Elevado se tornasse na mais nova via congestionada da capital. É que na década de 1970 o país vivia um “boom” na venda de carros. A frota só cresceu nas últimas cinco décadas.
Atualmente, nos chamados períodos de pico no trânsito da cidade, 31 mil veículos passam por dia no local.
Nos últimos anos, o elevado passou a ser fechado a partir das 21 horas toda noite, depois o mesmo foi feito ao longo do dia nos fins de semana, para permitir que os moradores usassem o local como ponto de lazer.
Denise Silveira, ciclo-ativista e defensora da ocupação dos espaços públicos pela população em ações culturais, esportivas e de lazer, é de opinião que o Minhocão deixou de ser odiado pelo paulistano, que entendeu que se pode transformar a via. ”Houve a intenção de fazer ali um corredor verde, mas não deu certo porque a prefeitura não conseguiu viabilizar a manutenção das empenas verdes”. As empenas, paredes laterais de um edifício, normalmente terminada em triângulo, as paredes-fachadas, que são usadas agora para abrigar os grafites gigantescos.
Segundo Denise, que participa de ações culturais como a “ciclovia musical”, que reúne, num mesmo evento, música e passeios de bicicletas pelas áreas centrais da capital, a transformação do elevado num “High Line” paulistano dependerá da prefeitura. “A ocupação do Elevado pelo paulistano é uma das coisas mais democráticas da maior cidade do país, pois permitirá se praticar a liberdade individual ou coletiva em atividades físicas, de lazer ou artísticas”, afirmou.