O ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, elogiou o projeto de lei que cria o Estatuto da Vítima (PL 3890/20) e disse que a iniciativa conta com o apoio do governo. Para ele, tem havido, nos últimos anos, inversão de valores no Brasil, com mais proteção aos criminosos do que às vítimas.
"Essa é uma iniciativa extremamente relevante, importante, que conta com o apoio do governo. O Ministério da Justiça está imbuído neste trabalho, em criar mecanismos no âmbito do Executivo para cuidar dessas pessoas, para preservar essas pessoas. E se eventualmente alguém tiver que ser constrangido que seja quem gerou a violência", afirmou.
Anderson Torres compareceu, nesta quinta-feira (17), à segunda audiência pública do grupo de trabalho (GT) da Câmara dos Deputados que analisa o Estatuto da Vítima. O objetivo da proposta, do deputado Rui Falcão (PT-SP) e outros 33 parlamentares, é proteger os direitos de quem sofre danos físicos, emocionais ou econômicos por ser vítima de crimes, desastres naturais ou epidemias.
De acordo com o estatuto, as vítimas devem ter assegurado o direito à comunicação, à defesa, à proteção, à informação e à assistência, além de apoio e tratamento profissional, individualizado e não discriminatório desde o seu primeiro contato com profissionais da área da saúde, segurança pública e da Justiça.
O estatuto também explicita o direito à indenização por danos morais e materiais causados pelo agente do crime ou pela omissão do poder público.
Falta de legislação
O deputado Felício Laterça (PSL-RJ), que coordenou a audiência, ressaltou que no ordenamento jurídico de outros países, como nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Argentina, já existe legislação de proteção à vítima.
"No Direito brasileiro, ao contrário, os direitos das vítimas têm sido anunciados apenas em alguns dispositivos isolados, espalhados por diferentes leis. Esse grupo de trabalho tem a oportunidade de mudar essa situação, redigindo um conjunto de regras abrangentes e de aplicação vasta, que alinhe o nosso País à tendência mundial”, avaliou.
Auxílio-vítima
Coordenadora do GT, a deputada Tia Eron (Republicanos-BA) destacou que o PL 5230/20, apensado ao projeto principal, prevê a criação do “auxílio-vítima”, custeado por recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). O ministro Anderson Torres pediu para, antes de o texto ser votado, opinar sobre esse ponto específico, para buscar o melhor caminho para custear o auxílio.
O relator do grupo, deputado Gilberto Nascimento (PSC-SP), concordou com a avaliação do ministro de que no Brasil há mais proteção aos criminosos do que às vítimas. A expectativa dele é votar o relatório sobre a proposta no grupo no dia 9 de março. Em seguida, o projeto será analisado por uma comissão especial a ser criada especificamente para essa finalidade.
Secretária Nacional de Assistência Social do Ministério da Cidadania, Maria Yvelonia Barbosa também enfatizou a disposição do ministério de colaborar para o aprimoramento da proposta. Também falando pela Secretaria, Paula Maria sugeriu que a proposta faça melhor distinção entre vítimas de violência e vítimas de calamidade pública.
Responsabilização do Estado
Na visão da diretora do Sindicato dos Advogados de São Paulo, Gabriela Soares de Araújo, um dos pontos positivos do estatuto é responsabilizar o Estado pelas catástrofes e calamidades públicas, como pelas mortes ocorridas no temporal em Petrópolis (RJ), nesta terça-feira (15).
"Não tem como o poder público fazer parar de chover ou impedir um desastre natural, mas é possível evitar tantas mortes. Em tantos casos a gente vê pessoas morando em péssimas condições nas encostas. E por que o Estado não faz nada antes, não proporciona condições de moradia?", questionou.
Além disso, Gabriela Soares destacou que o estatuto não estabelece penalidades, mas uma política pública que acolhe as vítimas e as envolve no processo de reparação do dano. Segundo ela, nem sempre a prisão do responsável é o suficiente para confortar a vítima, que quer participar do processo de reparação.
A advogada apontou ainda que o estatuto pode ser benéfico para mulheres vítimas de violência sexual ou violência política, por exemplo, já que prevê o tratamento não discriminatório e a capacitação dos agentes públicos para lidar com esse tipo de situação. Ela observou que há violência estatal muitas vezes nesses casos.
Presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, Raquel Lombardi ressaltou que a primeira pergunta feita em muitos casos de violência sexual é o que ela fez para ser vítima, como que roupa estava usando. Conforme ela, a vítima se vê revitimizada – a chamada vitimização de forma secundária – pela ausência do olhar do Estado.
Pontos positivos
Perito Médico Legista do Instituto de Medicina Legal da Polícia Civil do DF, Otávio Pereira salientou pontos que considera positivos no projeto, como a realização obrigatória de perícia médica para constatação de danos psíquicos, quando requisitadas pela autoridade policial, Ministério Público ou Poder Judiciário.
"O perito muitas vezes é aquele que primeiro recebe, acolhe e encaminha uma necessidade da vítima", explicou. Ele apontou, porém, escassez de peritos em muitos lugares do Brasil, dificuldades na condição de trabalho e ausência de protocolos de atendimento. Além disso, segundo ele, muitas vezes faltam redes de assistência para encaminhar a vítima.
Ana Paula São Tiago, vítima do médium em Abadiânia (GO) João de Deus, acusado de estupro de vulneráveis, contou que durante 13 anos não foi acolhida para fazer a denúncia. Para ela, se o estatuto já estivesse em vigor, isso não teria acontecido. Ele elogiou especialmente o dispositivo do texto que prevê que as entidades privadas que ofereçam serviços de apoio às vítimas de crimes deverão compartilhar os dados obtidos com a autoridade policial ou o Ministério Público no prazo de 24 horas, sob pena de responsabilização.
Já Jonia Lacerda, coordenadora de Psicologia do Projeto Higia Mente Saudável, que disponibiliza apoio e acolhimento ao cidadãos e aos profissionais que atuam na linha de frente no combate à Covid-19, disse que para a vítima é essencial, entre outros pontos, saber que não está sozinha e estabelecer estratégias de enfrentamento, como reencontrar as coisas importantes para ela e realizá-las, além de redes de proteção e apoio.