Em audiência na Comissão de Cultura da Câmara nesta quarta-feira (13), quilombolas, representantes do Ministério Público e profissionais de história, antropologia e urbanismo cobraram a efetiva proteção do Cais do Valongo, localizado na zona portuária do Rio de Janeiro e declarado patrimônio da humanidade pela Unesco, em 2017.
Principal porto de desembarque de africanos escravizados nas Américas, a região, também chamada de “Pequena África”, é alvo de disputas judiciais, conflitos de gestão, inquéritos policiais e baixo investimento na proteção dos acervos. Para o quilombola e consultor de pesquisas arqueológicas Damião dos Santos, também há “descaso” das autoridades quanto à população do Quilombo da Pedra do Sal, no entorno do cais.
“Não adianta valorizar apenas parede e tijolo, quando o principal a ser valorizado, no nosso entendimento, é o ser humano. E isso não acontece em relação ao patrimônio cultural da Pequena África”, disse.
O título de patrimônio da humanidade foi baseado no sítio arqueológico do Cais do Valongo, no Quilombo da Pedra do Sal e no Cemitério dos Pretos Novos. Por essa região, passaram cerca de um milhão de africanos escravizados entre os séculos 18 e 19. Segundo a Unesco, trata-se de patrimônio de “memória da violência contra a humanidade, representada pela escravidão, e de resistência” dos negros.
Negligência
O sítio arqueológico só foi detectado em 2010, durante obras da prefeitura para a reurbanização da zona portuária. O advogado e membro do Comitê Científico do Quilombo da Pedra do Sal Humberto Adami Junior reclamou de “negligência” com a região.
“O Cais do Valongo é a história do Brasil sendo recuperada. O Memorial do Holocausto, tão celebrado pela prefeitura anterior (Marcelo Crivella), já está quase de pé, lá no Morro do Pasmado (zona sul do Rio), enquanto que o Cais do Valongo ainda está lá, sofrendo com enchente e descaso. O prédio construído por André Rebouças também está lá com esse criminoso descaso da Fundação Palmares”, observou.
O procurador da República no estado do Rio de Janeiro Jaime Mitropoulos concorda com as críticas e informou que o Ministério Público já moveu ações para a reconstituição do Comitê Gestor do Cais do Valongo, a instalação do Centro de Pesquisa e Acervo e o estímulo público ao turismo etnoeducativo de base comunitária, com rede de comércio local.
“A comunidade da Pequena África não pode ser escanteada e alijada desse processo em momento algum, coisa que tem sido feita pela atual gestão federal, sobretudo a partir do Iphan”, disse.
A Prefeitura do Rio de Janeiro informou que tenta suprir a falta do Comitê Gestor por meio do Círculo do Valongo, que inclui vários dos atores envolvidos na gestão, fiscalização e proteção do patrimônio. O coordenador executivo de Promoção da Igualdade Racial, Jorge Freire e Silva, admitiu a necessidade de maior aporte orçamentário.
Arquiteta e urbanista, a presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), Laura di Blasi, informou que já foram aplicados R$ 5,5 milhões na guarda e proteção do acervo. Com 16 anos de pesquisas na região, a antropóloga Flávia Costa reclamou que o reconhecimento da Pedra do Sal como território quilombola, em 2005, ainda não teve a efetiva titulação por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Projeto de lei
Organizadora do debate, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) aposta na aprovação do Projeto de Lei 2000/21, já aprovado pelo Senado, que amplia a proteção do Cais do Valongo a partir de seu reconhecimento como patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro.
“O PL apresenta fontes de recursos destinados a manutenção e custeio, sem prejuízo da destinação de recursos ordinários. Tais aspectos estão sendo tratados pela Comissão de Finanças e Tributação dessa Casa”, afirmou.
Para o deputado Marcelo Calero (PSD-RJ), o Cais do Valongo revela uma história de sofrimento, violência e martírio, que deve servir como “espelho” para a sociedade aprender com os erros do passado e avançar em seu processo civilizatório.
“É dar visibilidade política ao Cais do Valongo em termos de políticas públicas que possam significar reparação, pagamento de dívidas históricas e debates sobre racismo e machismo”, observou.
O presidente da Federação Nacional de Associações Quilombolas (Fenaq), José Antônio Ventura, espera que a valorização do Cais do Valongo também ajude na recuperação de outros sítios arqueológicos, que, segundo ele, tiveram a “história apagada” pela mineração, especulação imobiliária e agronegócio. Ventura citou dois exemplos de Minas Gerais: Sítio da Serra do Salitre e Sítio do Ambrósio, que seria o segundo maior do país, só atrás do Quilombo dos Palmares, entre Pernambuco e Alagoas.